Desde a criação humana se abateu sobre a Terra uma série de antônimos que acabaram repercutindo numa oferta de escolhas para os “moradores” do planeta. Dentre tantas antíteses, sem dúvidas, a do “bem” e d “mal”, é a maior delas. Afinal de contas duas figuras estiveram presentes na Terra, mitologicamente falando, e fizeram parte da história da criação do universo, são elas: Deus e o Diabo. Até hoje apesar de uma série de crises da instituição religiosa, Deus é associado ao bem, à criação, à vida, e o Diabo conectado ao mal, às avessas, à discórdia humana, à tentação e ao pecado. Em “A Igreja do Diabo” de Machado de Assis, o autor cria uma hipótese fictícia em que o Diabo, na condição de rei das trevas, funda sua própria igreja na tentativa de exterminar as religiões e os dogmas de Deus do universo. Os personagens humanamente verdadeiros nos trazem uma hipótese um tanto quanto surreal e comprova a máxima de que os seres humanos são eternos insatisfeitos e incoerentes a todo tempo.
O conto garante uma discussão moralista através das oposições entre Deus e religião, homem e razão, estiga a reflexão de como cada pessoa pode exercer a religiosidade sem medo de viver suas incertezas, ou mesmo de duvidar da obediência às regras de cristo e da bondade do homem. O Diabo questiona a hipocrisia religiosa e as práticas salvacionistas do perdão e do amor ao próximo.
Através de signos bastante evidentes, o enredo flui fazendo uma série de cognições, relacionando termos divinos e diabólicos. Num primeiro instante, é interessante notar, como o Diabo resolveu fazer para criar seu estabelecimento “sagrado”. Começou usando uma das próprias criações de Deus, a igreja, para se firmar no mundo. A igreja, por senso comum, é tomada e até chamada metaforicamente como a casa de Deus. Depois, em sua idéia inicial, propôs a invenção de uma missa, o grande culto ecumênico da igreja cristã e até a adoção do vinho e do pão no culto, o sangue e o corpo de cristo. Se a igreja conota a casa de Deus e o vinho e o pão, o corpo e o sangue de cristo, é possível notar que como em todos os momentos da história da Bíblia, mais uma vez no conto, o Diabo quer tomar o lugar de Deus, quer ser ele, quer substituí-lo e aloprá-lo.
Certo dessa idéia e com espírito de vingança, o Diabo sai das “províncias do abismo” para o “infinito azul”. O céu e o inferno nunca foram tão bem sintetizados e descritos por duas palavras. Machado caracteriza o inferno como abismo, ou seja, como profundo, grande, sem volta e o céu como infinito azul, da cor do manto de nossa senhora, da luz, da santidade.
Sob ameaças o Diabo entrou no espaço divino do céu, prometeu esvaziá-lo, porque sua nova agremiação iria “roubar” os fiéis que seguiam a doutrina do bem até então. Com ironias e um ar sagaz de deboche, o Diabo tinha nas mangas a idéia de que “as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão”.
A figura maligna apenas criou uma idéia racional: de que as virtudes, apenas eram virtudes porque as pessoas que as praticavam se limitavam a segui-las por questões dogmáticas. Essas virtudes eram qualidades humanas tão frágeis como fios de algodão, e bastava uma forcinha mínima para arrebentarem, ou seja, bastava a coragem dada por uma nova crença que desse liberdade ao homem para não mais praticá-las e sim subvertê-las. A igreja do Diabo seria essa coragem. As virtudes na ideologia cristã, deitada no evangelho de Jesus Cristo, são tomadas como a salvação, à bondade e a santidade. Desvirtuar-se das virtudes é desvirtuar-se da religião, é oprimir as regras da igreja, é ir contra aos conceitos impostos pela seita sagrada que escolheu para seguir, daí estabelece-se o limite e as barreiras, que acabam culminando com a prisão dos “fiéis” dentro de um conjunto de obstáculos que os impede de atuar fora ou contra esses limites. A proposta do Diabo era simples e barata. Oferecer aos “fiéis” a possibilidade de uma conversão que ia de encontro a esses limites e a essas virtudes, tidas por Machado como rainhas. Essa conversão iria trazer consigo as franjas de seda pura, as genuínas, instintivas e libertas dos pudores e dos votos de castidade, pobreza, obediência ou bondade, impostos pela igreja de Deus.
O Diabo continua, e usa dois termos para contrapor idéias: livro santo e bigode de pecado. O primeiro deles é fácil discernir a metáfora. O livro santo se remete a Deus, à Bíblia ou ao livro sagrado de uma religião. O bigode de pecado por sua vez, conota imediatamente ao ar perspicácia e reprimido da dúvida, da crueldade, da infâmia e injustiça, dos pecados que brandam da mente humana e vertem-se pra fora “manipulados” pelo ser do mal.
As figuras carnavalescas, cheias de mistério, pregam nesse conto um debate sobre a moral e o instinto. O certo e o errado. O pudor e a luxúria. Uma série de castidades e dogmas que cercam aqueles que sob uma ideologia religiosa promete seguir.
A religião historicamente gerou polêmicas por suas posições, muitas vezes avessas e divergentes das opiniões de seus fiéis. O próprio debate em si, sobre questões da igreja e de suposições de se seguir o caminho do mal, ou seja, do Diabo, já garante à insegurança e ao desespero emocional.
O Diabo, no conto, usa outro termo bastante interessante, quando ele esclarece a Deus o tom de sua idéia. “Vou a negócios mais altos.”, diz o maligno. É interessante notar como o Diabo trata sua igreja, como um negócio, como um empreendimento, como uma empresa. Não tão diferente como algumas agremiações religiosas vêem seus templos sagrados e seus seguidores nos dias de hoje. A igreja por si só é tomada como um bem. Padres não casam para não dividirem suas heranças, que são da Igreja, pastores evangélicos por sua vez, muitos deles, mas sem generalizações, pedem dinheiro alto para custear e financiar supostas vagas no céu, propondo a salvação através da economia. O Diabo no conto, não faz diferença, apenas deixa explícito verdadeiramente que a igreja é um negócio. A igreja de Deus ou a do Diabo são tomadas como negócios, que utilizam marketing para se difundir pelo mundo. O próprio termo propaganda, veio de propagare, dito por um papa italiano séculos atrás.
Deus cita ao Diabo um exemplo de bondade. O Diabo nega e deixa evidente sua eterna desconfiança. Os homens são capazes de ser bondosos e desconfiados. Características de Deus e do Diabo são claramente visíveis na humanidade, não porque sejam bons ou ruins, mas porque são humanos, tem sentimentos, vontades, ímpetos e instinto animal, por mais racional e desenvolvido que sejam seus cérebros.
Ao contrário do Diabo, em certo momento no conto, Deus se mostrou confiante e inabalável, o Diabo em nenhum momento se mostrou seguro ou confiante. Haja vista tamanha dissimulação ao revolver se encontrar com Deus e divulgar seu fardo.
Avisando ao mestre das luzes, o ser maligno que veio do inferno, desceu a Terra e começou a difundir sua ideologia. A promessa principal era a permissão do consumo por seus discípulos, das delícias da Terra, de todos os deleites íntimos. Mais uma vez, para convencer seus novos fiéis, tomou a posição de Deus, se assumindo como o verdadeiro pai, o gênio da natureza. Conquistou fãs não através das certezas como fez o próprio Deus, mas através da dúvida. Ele pairava com uma história a princípio absurda, que confundia as mentes e agremiava novos votos de confiança.
A base era autorizar a prática das virtudes legítimas e naturais, as “seda pura”, tolindo as virtudes aceitas, “de algodão”. Aboliu da Terra os sete pecados capitais. A inveja passou a ser a virtude principal e a “origem das prosperidades infinitas”. A fraude era “o braço esquerdo do homem”, “o braço direito era a força” e dedicava-lhe destaque aos canhotos, tidos em certos momentos pela igreja de Deus, em escrituras sagradas, como filhos do próprio demônio.
Das regras mais eloqüentes, a venalidade ganhada admirável poder. Coisas invendáveis, como a fé, os votos, a palavra, a opinião, foram autorizadas ao livre comércio. Até os órgãos foram autorizados à venda. E eis o debate inteligente, mas anticristo, se você pode vender tudo o que é seu, porque não vender bens abstratos como sentimentos ou coisas que você pode dar sem cobrar? O que é afinal a doação? Interessante notar o grau capitalista do pensamento do Diabo. “O dinheiro faz gozar” dizia Lyotard, estudioso da pós-modernidade. “Time is Money”. O dinheiro criado pelo homem seria o folheto da missa do Diabo?
O conto capcioso, mostra em cada momento, através das figuras mitológicas e metafóricas que remetem ao bem e ao mal como o homem sem limites, na base do livre-arbítrio perderiam sua moral. E como as religiões limitam o ímpeto humano. A cada instante, Machado de Assis, mostra na ficção, o que de fato é real à humanidade. A possibilidade de se fazer algo, até então errado, é vista com novos olhos. O ser humano busca o que é fácil, o que é egoísta.
Com o processo de globalização o império individualista se instaurou no mundo. A religião foi abatida, e como o filósofo Friederich Nietzche pulsou em seus textos, Deus está morto. Algumas agremiações cristãs acreditam na volta do Deus vivo, enquanto ele não vem à história do mundo nos leva para os devaneios do Diabo, nos liberta da amálgama entre a sanidade e a inconseqüência, nos oferecem um mundo Dioniso de novas visões, novas possibilidades que nos criam novas expectativas e anseios.
Em determinado instante o Diabo chega a tomar o amor ao próximo como obstáculo à nova religião e a única hipótese aceita era de se amar as damas alheias, proposição totalmente criticada e tolida da igreja de Deus.
Em contrapartida, se o Diabo trouxe consigo a liberdade para dar ao homem a liberdade para agir fora dos preceitos da igreja de Deus, ele impôs novos limites, criando uma espécie de mandamentos do Diabo. Não amarás, venderás seus votos e opiniões, serás egoísta, praticarás a luxúria, ou seja, se de um lado o maligno tirou certos limites, colocou-lhes a disposição outros, que tão quanto os de Deus, deveriam ser seguidos.
Os fiéis do Diabo começaram a praticar atos ilícitos dentro de sua igreja. Deus então questionou atuante: As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão? E então veio a resposta: É a eterna contradição humana.
Diante das teorias de Barthes e Greimas e através da mensagem passada pelo conto e pelos signos/grandezas presentes em todo seu desenrolar, disposto às intensidades e extensidades da interpretação pessoal, vemos que o homem busca a fé para discipliná-lo, para aproximá-lo com algum ser superior, para encontrar supostas verdades escondidas sobre o mundo e a vida, a humanidade busca a dogmas para segui-los e garantir um suposto bom lugar junto do divino, principalmente em tempos de guerra e violência, como vividos atualmente. O livre arbítrio foi aderido, entretanto, o ser humano não vive de limites, não gosta de obedecer a regras, é instintivo. Essa característica dá ao homem um sentimento intrínseco de dúvida, desespero e pecado, afinal ele deve seguir as regras daquilo que ele chama de conceitos divinos e sagrados. O homem, mais uma vez se mostra, um eterno insatisfeito, que se contradiz a todo instante, que erra, se arrepende, perdoa, e não sabe bem o que quer, afinal de contas no fundo ele é um animal, tem seu instinto, o que gradua esse instinto é exatamente aquilo que os diferencia dos outros bichos, a racionalidade.