15 de dezembro de 2009

UMA LEITURA DA MORTE NA OBRA ‘O AMOR ACABA’ DE PAULO MENDES CAMPOS

Trabalho apresentado pelo aluno André Luiz Barros para obtenção de grau da displina Laboratório Experimental II, do curso de pós-graduação lato sensu de Jornalismo Cultural da UERJ


“O mais importante na vida é não ter morrido. Amo a vida, mesmo quando a odeio. Se tivesse sido consultado, não teria desejado vir ao mundo, mas, já que aqui estou, vou demorar-me tanto quanto possível. Viver é nascer lentamente. O homem procura a sua densidade, e não a sua felicidade. A consciência é uma doença. Ter um corpo é uma grande ameaça ao espírito.”

Paulo Mendes Campos

A Crônica:

A crônica tem como ponto de partida histórica o início da era cristã, quando eram usadas para registrar relatos dos acontecimentos da época. A partir do Séc. XIX, a crônica se aproximou das características do conto e da poesia, gêneros mais antigos. Ultimamente ela é tida como um registro poético e muitas vezes, irônico de assuntos relacionados, em sua maioria absoluta, a eventos do dia-a-dia.

De acordo com Angélica Soares, no livro Gênero Literários, a crônica se utiliza de diversas ferramentas, do diálogo, do monólogo, da alegoria, do verso, de personalidade ou fatos reais, de personagens ficcionais, etc., contradizendo a falsa ideia de que esse gênero é baseado apenas na reprodução de fatos, como as reportagens que fazem isso com primor, o que lhes ajuda a garantir um título injusto de menos importância dentro dos gêneros literários. “É uma forma poética de captar o instante e torná-lo mais perene, eterno”, diz a autora.

A crônica possui algumas características bastante especificas: faz uso da narrativa informal, familiar e intimista; usa uma linguagem coloquial; tem sensibilidade no contato com a realidade; usa de algumas doses de humor com freqüência; costuma ser um texto leve e sintético; discorre sobre fatos modernos e do cotidiano e possui uma natureza ensaística em que a narração é feita em ordem cronológica.

O gênero está dividido em duas categorias: jornalística – que está ligada ao momento e se torna datada, e literária - como é o caso de Paulo Mendes Campos, que ultrapassa a narração do cotidiano e resiste ao tempo.

Entre os cronistas mais famosos, destacam-se: Machado de Assis (em seus folhetins), Olavo Bilac, João do Rio, Drummond, Eneida, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e Sérgio Porto.

Apresento-vos: Paulo Mendes Campos

Segundo informações do ‘Projeto Releituras’ do jornalista Arnaldo Nogueira Junior, o autor nasceu na capital mineira em 1922 e carregou consigo toda a nacionalidade e modernismo da famosa ‘Semana de Arte Moderna’ do mesmo ano. Chegou a estudar Direito, Odontologia e Veterinária, na década de 1940, mas não concluiu nenhuma das graduações.

Anos mais tarde, para sustentar a família, dedicou-se a tradução de textos em francês e inglês, foi repórter e até redator de peças publicitárias. Devido à dedicação às letras, em meados da década de 40 chegou a ser diretor do suplemento da Folha de Minas e colaborador de O Diário e O Estado de Minas. Participou do I Congresso Brasileiro de Escritores, em 1945, ano em que passou a viver no Rio de Janeiro, a princípio como funcionário do Instituto Nacional do Livro. Passou a redigir textos para o Correio da Manhã (entre 1946 e 1948), ao lado de Álvaro Lins, Graciliano Ramos e Mário Pedrosa. Publicou seu primeiro livro de poesia, A Palavra Escrita, em 1951.

Nas décadas seguintes publicou vários livros de crônicas, entre os quais O Cego de Ipanema, O Colunista do Morro e O Amor Acaba: Crônicas Líricas e Existenciais. Em 1966 recebeu o prêmio Alphonsus de Guimaraens, concedido pelo Ministério de Educação e Cultura, pelos livros de poesia Testamento do Brasil e O Domingo Azul do Mar. Sua obra poética, vinculada à terceira geração do modernismo, inclui ainda os livros Poemas (1979), Diário da Tarde (1981) e Trinca de Copas.

O autor faleceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 1° de julho de 1991, aos 69 anos de idade. Em sua homenagem, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro batizou com seu nome uma pequena praça num cruzamento entre as ruas Dias Ferreira, Humberto de Campos e General Venâncio Flores, no Leblon, Zona Sul da cidade.

O ensaísta e doutorando em Letras Comparadas, DLCV-FFLCH-USP, tem o autor como um verdadeiro cronista-poeta que vivia como personagem e protagonista de sua própria obra, vivendo o que escrevia e escrevendo sobre sua vida. O autor apaixonado pelos dias de domingo, tinha como temas de obsessões: a morte, o amor, a memória, a experiência do poético e a leitura da poesia.

‘A morte’ na crônica:

Os avanços da medicina têm prolongado cada dia mais a expectativa de vida no mundo, por outro lado, problemas sociais como a fome, a miséria, a violência acometem essa mesma população todos os dias. A vida, a saúde e a morte estão diretamente conectadas e fazem parte do cotidiano de todos que diariamente fogem desse fim que não tem hora certa e determinada pra chegar. A ansiedade a aflição proveniente dessa incerteza, fez com que a literatura usasse e abusasse do tema, nos contos, em poesias e romances, sua presença é freqüente. Uns tentam amortecer a dor da perda através das letras, outros narram através de um eu - lírico morto como é sentir a morte, há aqueles que discorrem sobre a morte de terceiros, a agonia dos entes próximos e dos mais chegados e ainda àqueles que dissertam liricamente sobre o tema extraindo seu lado místico, lúdico e abstrato. A morte é uma experiência incompartilhável e é exatamente por isso que é tão expressa na arte, porque já que podemos experimentá-la apenas uma vez, porque não senti-la através do cinema, da pintura e da literatura usando nossos cinco sentidos enquanto vivos? E é exatamente por isso que a morte na arte é tão expressa e tão assistida.

A crônica, no entanto, adotou o tema e usa essa parte do ciclo vital tão normal e que acomete milhares de pessoas por dia em suas entrelinhas. Praticamente todos os autores já trataram do assunto, principalmente por se poderem extrair das mais empolgadas risadas ao mais profundo pranto, por se tratar de algo rotineiro, que faz parte do cotidiano do mundo, e que nos tange diariamente. Talvez a morte seja nossa incerteza mais certa, já que, como diz a velha máxima, “para morrer, basta estar vivo”.

‘A morte’ nas crônicas de PMC:

No livro ‘O amor acaba’, podemos observar a pluralidade temática do autor. Entre lamúrias de uma adolescente de quinze anos, a narração do voo de um pequeno pássaro sobre a cidade do Rio de Janeiro, o amor e o fim dele ou a morte física e espiritual, o autor nos desconcerta com narrações do cotidiano, através de um olhar lírico e poético sobre o mundo e seus devaneios. O talento do autor pra poesia acaba fugindo pelas linhas das crônicas que nos tocam, nos fazem rir e em determinados casos ficar revoltados ou aflitos.

Para a mestra em Letras (Literatura Brasileira) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutora em Literatura Comparada - Semiologia - Université de Paris VII, os temas explorados nas crônicas de Paulo Mendes Campos, “vão das reminiscências da infância às experiências adultas, percorrem o solo de uma escrita boêmia, urbana, poética e, principalmente, moderna... que sofistica a narrativa cotidiana, representando-a de modo a reforçar o imaginário criado em torno de suas personagens”.

As crônicas “Em face dos mortos”, “Últimos apelos” e “Encenação da morte” mostram a busca do autor por desbravar o tema, não que sua obra seja fúnebre, pelo contrário, a ironia se vê presente em todo o livro, mas a morte, o fim e o adeus, são praxe nos textos. Outras obras, como “O medo”, “A arte de ser infeliz”, “Anatomia do tédio” ou “Porque bebemos tanto assim?”, põem em voga as fraquezas do homem, que acabam levando-o a esse fim espiritual. De uma maneira ou de outra, a antítese vida/morte é carregadas pros textos do autor, seja na volúpia da menina virgem galopando em seu cavalo ou no término de um amor que nos acomete em qualquer segundo, como na crônica “O amor acaba” que deu nome ao livro.

O tratamento dado por ele ao tema pode ser observado também em outros livros, poesias e crônicas de sua autoria. Em “Os lados” dizia: Há um lado em mim que já morreu./ Às vezes penso se esse lado não sou eu. Já em “A morte”, escreve: “Vai comigo a morte, vou comigo à morte, concluindo: Morte, tens em mim tua vitória”.

Duas crônicas em especial retratam bem a maneira nem tão mórbida, até o contrário, às vezes cômica e realista, que o autor lida com o assunto.

Em “O canto fúnebre do carioca”, o texto possui um fundo hedonista com lembranças do passado do Rio e da figura do carioca e sua boemia. Um tom de nostalgia e crítica vai de encontro à tranqüilidade do passado. A forte presença de cenas do cotidiano ajuda a forjar, simular e convencer o leitor acerca da morte do carioca e do próprio Rio Antigo. Partindo da época do Brasil-Imperial, o autor discorre:

“Outrora morei num reino a beira-mar. Rosas floriam no Flamengo, jovens eram os arranha-céus e os telefones, os recados me chegavam do Largo do Boticário, do bar do Palace, do Joá, dos terreiros da Mangueira”.

O trecho deixa de forma quase poética a saudade do autor pelo passado histórico do Rio de Janeiro perdido hoje pela poluição sonora e visual das grandes cidades do mundo que cresceram pra frente, pros lados e para cima sem muita programação. Noutro instante Paulo Mendes Campos descreve a derrocada e uma série de transformações que modificaram a estrutura da cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX.

“Perdi-me na esquina da rua Gonçalves Dias em 1928, desabei com o Morro do Castelo, afoguei-me nos mangues de 1935.”

E continua:

“... corroí-me nas maresias da Barra, esvaí-me em tosse, esbati-me em treva, desbaratinei-me nas encruzilhadas da macumba, fui mastigado pelos peixes, desintegrei-me numa catástrofe aérea, esfarelaram-me as unhas dos agiotas, atassalharam-me as marretas imobiliárias, sufocaram-me os malignos, roeram-me os caninos dos vereadores...”

A crônica de meados do século XX, narra as mudanças ocorridas na então capital do Brasil, e mostra o esfacelamento do Rio Antigo, de forma cronológica e seguida de fatos verídicos que para o autor repercutiram no esfacelamento da cidade, que era vista no passado como um paraíso para PMC. O tom de nostalgia escrito de forma seqüencial percorre todo o texto e finda por sacramentar não a morte de uma pessoa, mas de uma alma, a alma carioca.

Já em outro texto, interessante notar na crônica “Encenação da morte”, também integrante do ‘O amor acaba’, como Paulo Mendes Campos, usando do eufemismo, busca humanizar a vida e a morte deixando claro que elas não são bem coisas impalpáveis, e mostrando-nos que podemos experimentá-las enquanto sãos. O autor nos põe como objeto de conquista, na constante guerra, literalmente física através de nosso corpo, entre as duas, com o objetivo principal de nos capturar.

“Somos uma espécie de troféu de uma luta freqüente entre a vida e a morte”

Importante notar a atualidade do texto quando ele diz:

“As mortes que perseguem a infância são em geral grossas e estúpidas”.

O trecho nos leva imediatamente à nossa atual situação de violência urbana vivida no Rio de Janeiro. O conteúdo dessa crônica é construído sob uma análise metafórica e figurativa em que o autor participa da narração através do conto de experiências pessoais.

Breve conclusão:

A leitura de textos, somada à história do autor e passagens de estudiosos da literatura brasileira nos ajuda a ler a ‘morte’, tal qual é escrita por Paulo Mendes Campos. O autor trabalha de forma abstrata o tema, não escrevendo sobre a morte física de fato, mas sobre a morte da alma, ou trabalhando a morte e os espíritos como coisas palpáveis que podem ser enxergadas. A morte para PMC tem vida, é um paradoxo, mas bastante visível em seus textos. A morte fala, anda, se comunica e faz história. A vida e a morte são com freqüência humanizadas e tem voz e agem como se não fizessem parte do ciclo vital humano, e sim da própria vida do homem. Além disso, o tema não é visto como tragédia e sim uma conseqüência do próprio ato de viver, bate-se a nostalgia e a saudade mas nunca a tristeza ou a revolta.

Nenhum comentário: